FINANCIAL REPORTING COMO INSTRUMENTO IDEOLÓGICO PARA FINS HEGEMÔNICOS: EVIDÊNCIAS DO BANCO DO BRASIL (1853-1902)

Samir Sayed1

Resumo: O objetivo central do nosso estudo é evidenciar e entender como o poder dominante brasileiro se apoderou do financial reporting e da contabilidade em si como instrumento ideológico e consequentemente de controle hegemônico, através da criação de uma realidade que satisfaça seus interesses materiais. A unidade de estudo é o Banco do Brasil entre 1853 e 1902, fase de muitas mudanças sociais, econômicas e políticas no país. Baseando-se na abordagem crítica, em um estudo de caráter histórico através de pesquisa documental primária, utilizamos a plataforma teórica do marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) em suas definições de hegemonia e ideologia, sobretudo. Os documentos foram analisados segundo questões contábeis específicas, sobretudo o cálculo do lucro e a distribuição de dividendos, além do discurso empregado. As conclusões apontam que o Banco do Brasil ao longo do período áureo da produção cafeeira nacional foi utilizado pelo poder dominante, apoderado do Estado, para a transferência de recursos para a burguesia, contribuindo de maneira importante para a desigualdade econômica e social em nosso país. Especificamente através da interface entre sociedade civil e sociedade política no seio do Estado Brasileiro durante o período estudado. Argumentamos, pois, que o financial reporting e a contabilidade são instrumentos de disseminação e controle ideológico, mas ao conterem essas características, evidenciam adicionalmente as contradições do sistema capitalista-burguês.

Palavras-chave: História da Contabilidade. Hegemonia. Ideologia. Banco do Brasil.

FINANCIAL REPORTING AS AN IDEOLOGICAL INSTRUMENT FOR HEGEMONIC PURPOSES: EVIDENCES OF BANCO DO BRASIL (1853-1902)

Abstract: The central objective of our study is to demonstrate and analyze how the Brazilian ruling group took over the financial reporting and accounting itself as an ideological instrument and consequently of hegemonic control, by creating a reality that satisfies their material interests. The study unit is the Banco do Brazil between 1853 and 1902, period of many changes in social, economic and politics in the country. Based on the critical approach, in a historical study through primary documentary research, we use the theoretical platform of the Italian Marxist, Antonio Gramsci (1891-1937) in his definitions of hegemony and ideology, especially. We intended to analyze specific accounting issues, especially the income calculation and the dividends distribution. The findings suggest that the Banco do Brazil during the golden period of national coffee production was used by the ruling group, seized by the state, for transferring resources to the bourgeoisie, contributing significantly to the economic and social inequality in our country. Specifically, through the interface between civil society and political society within the Brazilian State during the period studied. We suggest that the financial reporting and accounting itself are used as ideological controlling tools, but by containing these characteristics, additionally, they show the contradictions of the bourgeois-capitalist system.

Keywords: Accounting History. Hegemony. Ideology. Brazilian History.

INTRODUÇÃO

O estudo da disciplina acadêmica História pautou-se desde as primeiras décadas do século passado na dicotomia História Tradicional e Nova História (Burke, 1990). Em linhas gerais a primeira se encarrega de narrar os fatos objetivamente; já a segunda mira na interpretação sob as mais diversas teorias. No estudo da História da Contabilidade esse debate também ganhou força, sobretudo após 1980 (Carmona et al, 2004). A Nova História da Contabilidade acompanhando a discussão ontológica e epistemológica das pesquisas contábeis dos principais periódicos (Baker & Bettner, 1997; Chua, 1986; Morgan, 1988) também desenvolve uma vertente crítica (Merino, 1998; Tinker & Neimark, 1988), em que a reinterpretação do passado possibilita ampliação do estudo do fenômeno contábil e de suas trajetórias ao longo do tempo. Nesse campo tomam importância os estudos que focam a intepretação e crítica às práticas contábeis, organizações, relações econômicas, sociais e culturais em determinadas épocas históricas.

Uma das linhas estudadas no campo da história da contabilidade de caráter crítica é a interpretação do marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) que escreveu sua principal obra (Cadernos do Cárcere) enquanto esteve na prisão (1926 - 1937). Em linhas gerais, o teórico italiano aborda a questão da ideologia sob três formas complementares conforme elucidado por Portelli (1977): (i) como ideologia da classe dirigente, abrangendo todos os ramos da ideologia, em áreas como artes, ciências, economia, direito, entre outros; (ii) como concepção de mundo, que é difundida de maneira ampla nas mais diversas camadas sociais para liga-las às classes dirigentes: assim ela se impregna e se adapta a todos os grupos e (iii) como se trata da direção de cunho ideológico da sociedade, se exprime sob duas faces: (a) com as organizações que criam e difundem a estrutura ideológica e (b) com os instrumentos de difusão ideológicos, ou seja, o material ideológico, como o sistema escolar, a mídia de massa, as bibliotecas (p. 22)

O arcabouço teórico do autor é utilizado em vários campos do conhecimento como Educação (Morrow & Torres, 2001), História (Schecter, 1990), Sociologia (Kann, 1980). Em contabilidade, as ideias gramscianas são estudadas em duas grandes vertentes: o histórico (Ashraf, Muhammad & Hopper, 2019; Yee, 2009) e o hegemônico-ideológico (Chiapello, 2017; Zhang & Andrew, 2016; Spence, 2009).

O presente artigo situa-se na linha de abordagem crítica da história da contabilidade brasileira, já que visa analisar como a contabilidade e o financial reporting foram utilizados para atender o interesse da classe dominante no Brasil entre 1853 e 1902. Nessa direção, Morgan (1988) aponta que “os contadores geralmente vêem a si mesmos como avaliadores objetivos da realidade, representando (a realidade) ‘como ela é’ (…) os contadores tipicamente constroem a realidade de uma maneira limitada e única” (p. 477), ideia essa corroborada por Hines (1988). A contabilidade tem a capacidade de criar e controlar a realidade: isso se traduz em poder para aqueles que a usam (Baker & Bettner, 1997). Eles afirmam que esse poder reside nas instituições que criam valores, sustentam e legitimam mitos e fatos, mascaram conflitos e perpetuam ordem social. Quem controla a estrutura de poder tem o interesse de manter o status quo e usa a contabilidade como artifício para essa finalidade. Para isso, usaremos o Banco do Brasil como unidade do estudo no período compreendido entre 1853 e 1902, bem como conceitos da obra de Antonio Gramsci, sobretudo, ideologia e hegemonia.

Assim sendo, o objetivo dessa pesquisa é entender através de uma abordagem gramsciana como e porque o Banco do Brasil, entidade representante da união entre sociedade civil e sociedade política brasileira, utilizou-se do financial reporting como instrumento de disseminação ideológica do grupo dominante entre 1853 e 1902.

Para alcançar os objetivos da pesquisa usaremos como dados 50 anos em relatórios anuais e demonstrações financeiras (primordialmente) e outras formas de comunicação com o mercado e com o público em geral, bem como outros documentos, como correspondências, relatório de gerência, pareceres, etc. Essas fontes se localizam essencialmente no Arquivo Histórico do Banco do Brasil (RJ). Foram consultadas apenas fontes primárias.

A fim de melhor compreensão, nossa pesquisa está estruturada em 5 partes: após esta introdução, abordaremos no referencial teórico sobre a pesquisa em história da contabilidade, as principais ideias de Gramsci e posteriormente, conceitos importantes acerca da prática contábil à época da tempestividade adotada no estudo. Em seguida, traçamos os aspectos de método, análise e por fim as conclusões do estudo.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Pesquisas em história da contabilidade no Brasil

A importância da pesquisa em história da contabilidade está intrinsecamente ligada com a prática contábil, relações econômicas e sociais atuais (Miller & Napier, 1990). A realidade vivida no presente corresponde a continuação e evolução do passado, bem como indicativo de futuro. (Carnegie & Napier, 2012). Nessa direção a pesquisa em história da contabilidade tem muito a oferecer para o entendimento da contabilidade, tanto na abordagem tradicional quanto na nova história da contabilidade (Previts et al, 1990). Porém percebe-se que os estudos na área se concentram sobretudo em países de língua inglesa, inclusive com periódicos dedicados à área. O Brasil ainda carece de estudos sobretudo quando comparada com a realidade internacional, já que de 2000 a 2016 somam apenas 36 artigos periódicos nacionais (Qualis A – B2) e 2 teses defendidas no país, em que há preponderância de estudos tradicionais (HCT) e resgates bibliográficos (Sayed et al, 2019).

A História da Contabilidade Tradicional (HCT) pautada na dualidade objetividade x positivismo visa narrar os fatos históricos distanciando o pesquisador, que deve se ater na neutralidade. Buscam contar a realidade histórica apoiando-se sobretudo em fontes primárias (Keenan, 1998). Já a Nova História da Contabilidade (NHC) apoia-se na interpretação e na crítica, inserindo o pesquisador diretamente no estudo. Além das fontes primárias, há utilização de fontes negligenciadas na HCT, como fontes secundárias, história oral e de vida, além do uso de teorias sobretudo das ciências humanas (Miller, Hopper & Laughlin, 1991).

Nesse sentido, quando falamos de conceitos contábeis, a NHC busca entendê-los e contextualizá-los historicamente, enquanto a HCT os tem como conceitos objetivos e neutros, sem quaisquer interferências daqueles que tem o poder de criar a realidade através da contabilidade (Carmona, Ezzamel & Gutiérrez; 2004; Hines, 1988). Assim, o financial reporting pode ser percebido como fenômeno ideológico sustentando e legitimando a ordem social, econômica e política, atendendo os interesses daqueles que possuem poder de influenciar sua construção (Cooper & Sherer, 1984).

2.2 Aspectos conceituais de Antonio Gramsci (1891-1937)

Gramsci trabalhou ativamente como jornalista de esquerda dentro do Partido Comunista Italiano, sendo inclusive uma de suas lideranças desde a fundação, escrevendo sua contribuição teórica enquanto mantido preso, os Cadernos do Cárcere. O ponto principal da obra de Gramsci que vamos abordar é o conceito de ideologia, mas para compreendermos tal significado, se faz necessário falarmos sobre alguns pontos (não todos e de maneira apenas esquemática) da teoria marxista e gramsciana. Para isso o quadro abaixo resume alguns destes e aponta suas implicações:

Tabela 1 – Conceitos e definições esquematizados de Antonio Gramsci

Conceito

Definição

Implicação

Estrutura (Marx)

Base econômica da sociedade, onde se dá a relação de produção (concreta).

Relações de classes e conflitos

Superestrutura (Marx)

Expressão cultural das formas de produção, reino das ideias

Estratégias do poder dominante para perpetuação do poder.

Sociedade politica

Conjunto de mecanismos para manutenção do poder dominante, sobretudo coerção e burocracia

Repressão possibilita a manutenção da classe dominante no poder

Sociedade civil

Organizações responsáveis pela elaboração e disseminação da ideologia

Instrumentos de difusão ideológica

Estado ampliado

Sociedade política (+) sociedade civil

Interação entre coerção e difusão ideológica

Bloco Histórico

Arranjo de forças materiais e ideológicas em dado período

Concepção de mundo da classe dirigente (detentora dos meios de produção

Ideologia

Concepção de mundo, sobretudo do grupo dominante

Disseminação nos diversos grupos e agentes sociais.

Instrumentos de difusão ideológica

Artefatos e maneiras para disseminar a ideologia do grupo dominante

Articular consenso das massas

Hegemonia

Capacidade do grupo dirigir eticamente e estabelecer campo de liderança

Base para edificação do bloco histórico, garantidos pela sociedade civil

Adaptado de Portelli (1977)

Na visão de Portelli (1977), para a formação de um bloco histórico é fundamental que a superestrutura e a estrutura esteja organicamente ligados: na visão gramscista a organicidade pode ser entendida como “a necessidade do movimento superestrutural do bloco histórico evoluir nos limites do desenvolvimento da estrutura, mas também, mais concretamente, como a obra dos grupos sociais encarregados de gerir as atividades superestruturais”. (p. 47). Gramsci (1999) afirma que esse movimento é assegurado pela “camada social encarregada de gerir a superestrutura do bloco histórico – os intelectuais.” (p. 1518). Dessa maneira, eles podem ser entendidos como funcionários da superestrutura em nome da classe que representam e à qual estão estreitamente vinculados, social e economicamente (ao grupo dominante). Nesse ponto, Bianchi (2008) aponta que a relação entre estrutura e superestrutura na visão gramscista adquire um “nexo necessário e vital.” (p. 137). Para a função de propagadores de um dado sistema hegemônico, em Gramsci (1999) os intelectuais das classes dominantes, vistos como progressistas atraem e dão por cabo subordinando os demais intelectuais dos outros grupos, gerando, dessa forma, “um sistema de solidariedade entre todos os intelectuais, com laços de ordem psicológica (vaidade, etc.) e, frequentemente de casta (técnico-jurídico, corporativo, etc.) (...) leva à criação de um bloco ideológico (...) que vincula as camadas de intelectuais aos representantes de classe dirigente.” (p. 104). Outrossim afirma que não basta o a condição econômica, é necessário que o grupo dominante tenha uma política para os intelectuais, quer através de (i) uma concepção de vida, uma dignidade intelectual ou (ii) do programa escolar, educativo, pedagógico.

Uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações da vida individual e coletiva.”: é assim que Gramsci (1999) define o conceito-chave, ideologia. (p. 868). O autor afirma que só são essenciais as ideologias tidas como orgânicas, aquelas que são vinculadas a uma classe fundamental: a ideologia vai se difundir e se propagar na medida em que se desenvolve a hegemonia sobre todas as atividades do grupo dirigente. As consequências dessa concepção tão ampla da ideologia é que estão contidas nessa todas as atividades do grupo dirigente, mesmo as que parecem ser menos ideológicas (Gramsci, 1999).

Porém a expansão não poderia aparecer como a realização dos interesses dos grupos diretamente beneficiados, devendo se aparentar como uma expansão universal como se fosse expressão de toda a sociedade. (Gramsci, 1999). Nessa direção, essa concepção da classe dirigente, isto é, a ideologia deve se espalhar para toda a sociedade: para isso a filosofia e história se identificam nesse momento: qualquer filosofia histórica, isto é, orgânica deve prolongar-se através do senso comum, que, segundo Portelli (1977), é garantido pela “política, que assim assegura a unidade ideológica do bloco histórico.” (p. 25). Contudo, afirma Nogueira (2003) a sociedade civil não deve ser encarada apenas como um território de ações e iniciativas privadas, mas deve ser observada com uma função estatal, dado que é colocada como hegemonia política e cultural de um dos grupos perante a sociedade como um todo.

Quando estudamos as relações entre sociedade civil e sociedade política, Gramsci (1999) afirma que não existe sistema social em que o consentimento seja a base exclusiva da hegemonia, nem Estado que possa, somente por meio da coerção, continuar a manter de forma durável sua coerção; assim, a sociedade civil e a sociedade política mantêm, pois, relações permanentes, através da colaboração dos órgãos das duas sociedades no seio do Estado, como a formação da opinião pública que favorece o consenso em todos os atos da sociedade política, através da imprensa, radio, etc. Assim, a hegemonia da burguesia se dá na impregnação ideológica de todo o sistema social.

Nesse sentido, a contabilidade, seus conceitos e práticas são impactados de maneira importante por questões ideológicas e de construção social, já que tem a capacidade de elucidar ideologia consistente com os objetivos do capitalismo (Cherns, 1978) e legitimar a forma de distribuição de recursos na sociedade através da racionalidade econômica, apoiando aqueles grupos que detém o poder (Cooper, & Sherer, 1984; Tinker, Merino & Neimark, 1982).

2.3 Conceitos contábeis fundamentais (1837 – 1912): despesa e patrimônio líquido

Para o entendimento dos resultados desse trabalho é fundamental entendermos alguns conceitos contábeis à época da tempestividade do mesmo e como o Banco do Brasil entendia e contabilizava alguns eventos contábeis, como a remuneração da diretoria e as perdas na carteira de crédito. Esse passo é fundamental para entendermos que apesar de uma prática ser conhecida e vigente, o Banco do Brasil, apoiando-se na confluência de sociedade política e sociedade civil e no poder derivado desta, contribuindo para manter a ideologia do poder dominante através de textos utilizados nas demonstrações financeiras e nos conceitos contábeis propriamente.

Diferentemente dos dias atuais, não tínhamos regras contábeis propriamente ditas a serem observadas para procedimentos contábeis específicos (Silva, 2005) menciona algumas regulamentações, leis e decretos que impactam ou definem a contabilidade brasileira do século XIX, bem como levanta as obras com algum trecho (ou em sua plenitude) sobre matéria contábil. Em relação aos dispositivos legais, essencialmente se referem ao método de escrituração, tais como partidas simples, dobradas e livros obrigatórios. Mas para rotinas e políticas específicas para transações, não temos conhecimento de tais regulamentações. Adicionalmente, buscamos as obras contábeis de época do Brasil para tentar nos ajudar nas questões abaixo levantadas, através das definições e esquemas. Silva (2005) traz rica pesquisa documental sobre as obras do século XIX. Com a tentativa de identificar mudanças conceituais e evoluções inerentes à passagem do tempo, usamos como bibliografia dois livros disponíveis: A Metaphysica da Contabilidade Commercial (1837, editado em 1987) de Estevão Raphael de Carvalho e o Tratado Elementar de Contabilidade para Uso dos Alumnos dos Institutos de Commercio (1912) de Carlos de Carvalho. Ambos estão disponíveis e foram obtidos na Biblioteca da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Para isso vejamos que desde 1828, o conceito de despesa, inclusive com sua exemplificação já é conhecido à época, com “segregação extremamente clara do que eram consideradas despesas fixas e variáveis, conforme pode ser observado no corpo do texto (Silva, 2005):

(...) todos os ordenados, soldos, pensões ou vencimentos quaesquer a empregados permanentes e outras despezas fixas e, compreendo-se na segunda todos os jornaes, fornecimentos de armazéns, suprimentos e embarcações do Estado, e finalmente tudo quanto são despezas variáveis, segundo as exigências occorrentes. (p. 19).

Mesmo na bibliografia contábil brasileira, o assunto parece claro. Inclusive na diferenciação desta com o patrimônio dos sócios, a conta capital das obrigações. Já em 1837 na Metaphysica da Contabilidade Commercial, Raphael de Carvalho (1987) bem colocava:

21. Durante o giro do negocio, despesas improdutivas, por exemplo, comedorias, alugueis, etc., ha que são indispensaveis de fazer. Ora sendo estas despesas huma quantia que o individuo consome, e que foge d’uma vez para sempre do dominio de seu capital, cumpre saber a quanto ellas montão, a fim de que não reste embaraço, quando houver logar de conhecer o estado de sua fortuna. O assento das despesas he pois indispensavel. (p. 7).

22. Se algum artigo do negocio fôr arruinado ou extraviado por qualquer accidente que seja, o valor delle deve figurar ao lado das despesas improductivas (21) ou perdas.

23. Se o individuo, em vez de empregar em effeitos todo o seu capital, emprestar parte delle mediante algum beneficio, como este seja sempre hum ganho, do mesmo modo que as despesas acima (21) são perdas, não só he indispensável assentar a quantia emprestada, como o juro ou benefício que fôr produzindo. (p. 7).

Vemos que Raphael de Carvalho já nos anos 30 (1837) deixa bem claro a existência conceitual das despesas inclusive na visão de fornecimento pecuniário, como no item 23, que na situação análoga, porém contrária ao ganho, a perda ou malefício causado também deveria ser refletido como despesa “improductiva”. Vemos adicionalmente que mesmo a questão da dúvida em relação ao recebimento de um item não implicava necessariamente na sua não contabilização, já que de acordo com Raphael de Carvalho (1987), “(...) o fiado encerre certo gráo de probabilidade duvidosa para o recebimento, elle espera então para levar essa quantia ao assento respectivo, como se fôra à vista.” (p. 20)., isto é, lançando-se ou assentando uma despesa. Essa visão é reforçada nos artigos 89 e 92 da Metaphysica (Raphael de Carvalho, 1987):

89. Outro elemento da contabilidade vem a ser os ganhos e perdas; aquelles são valores recebidos, estas são quantias dadas, extraviadas ou consumidas. E pois o fim do negocio seja o lucro (13) e este só appareça depois de deduzidos os prejuisos, naturalmente nasce a conta de ganhos e perdas. (p. 38)

(...)

92. (...) De modo que, quer quando dá, quer quando recebe, como isto seja sempre por troca de outro gênero, inclusive o dinheiro, assim á vista como a tempo, segue-se que sempre mais de huma conta tem que ser considerada; não exceptuando os casos em que se ganha ou perde alguma coisa, porque a conta a que essa cousa pertencer, vai jogar com a de ganhos e perdas. (p. 39)

A própria tratativa conceitual contábil é dada por Carvalho (1912) no sentido em que “na transformação de um activo em um de menor valor (...)”, “debita-se a despeza e credita-se a conta de quem pagou a importância.” (p. 34). Mais à frente a clareza fica evidente, quando Carvalho (1912) afirma que “si ha prejuizo na liquidação o prejuizo é debitado á conta Lucros e Perdas.” (p. 49). Dessa forma fica evidente a clara segregação técnica à época entre um lançamento contábil em despesa ou em patrimônio líquido.

Apesar dessa distinção conceitual, veremos a seguir que o Banco do Brasil se utilizava dos mesmos de maneira diversa, com intuito de legitimar a criação de realidade que atendia aos interesses dos detentores de poder em detrimento do restante da sociedade. Como apontado por Burchell et al (1980) a informação contábil tem uma função ideológica que legitima ou racionaliza certas atividades ou comportamentos passados, funcionando como ferramenta de dominação e construção da realidade (Hines, 1988).

3. Aspectos Metodológicos

Com intuito de atingir o objetivo da pesquisa foi realizado um estudo histórico de caráter crítico e com abordagem qualitativa, que se utiliza da análise documental Conforme Bowen (2009) essa técnica envolve quatro procedimentos analíticos: (i) obtenção; (ii) seleção; (iii) avaliação e (iv) síntese. A fase de obtenção refere-se à capacidade de se ter os dados, se existem e se há ou não acesso aos mesmos. Após a obtenção dos documentos, cabe ao pesquisador baseado em sua pergunta de pesquisa e em leituras primeiras efetuar a seleção dos dados pertinentes. Na fase de avaliação são criadas as diversas categorias e modos de analisá-las, sobretudo em confronto com a teoria utilizada e na síntese são elucidados os produtos da análise documental.

3.1 Obtenção dos dados

Os dados primários foram obtidos pessoalmente no Museu Histórico do Banco do Brasil, localizado no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro à Rua Primeiro de Março, 66 – Rio de Janeiro (RJ). Inicialmente foram contatadas as responsáveis pelo acervo histórico solicitando visita e acesso aos documentos. Foram efetuadas seis viagens de São Paulo ao Rio de Janeiro durante março de 2015 e fevereiro de 2016.

3.2 Seleção dos dados

Nas duas primeiras visitas foram obtidos os relatórios bancais semestrais de 1853 a 1903 que correspondem em suma às demonstrações financeiras, notas explicativas detalhadas bem como pareceres da diretoria e do conselho fiscal. Os mesmos foram lidos e digitalizados. Após primeiro contato com material, levantamos alguns pontos que precisariam de mais elucidação sobretudo sobre as operações de crédito e rotinas contábeis de tal forma que foram obtidos e analisados nas visitas seguintes os relatórios da gerência (décadas 1870 a 1900, únicos disponíveis), decretos internos (1870 a 1880, únicos disponíveis) bem como livros contábeis (meses de dezembro e junho dos anos bancais de 1853 a 1903). Elucidamos abaixo pontos específicos dessa seleção sobre a identificação e tratamento dos dados.

3.3 Avaliação dos dados

Segregamos a avaliação dos dados em (i) textual, isto é, dentro da plataforma teórica gramsciana efetuar uma análise dos textos contidos nos documentos selecionados, sobretudo nas demonstrações financeiras e (ii) identificação e tratamento de dados contábeis sobre remuneração de diretores e perdas com créditos, bem como seu impacto na rentabilidade e na distribuição de dividendos da instituição.

3.3.1 Análise textual: categorização da dinâmica teórica gramsciana aplicada ao estudo

Especificamente utilizamos textos contidos nesses documentos em que se identificava algumas categorias e padrões: (i) relações do banco com o poder político; (ii) comentários e incentivos do banco sobre a produção e financiamento de café; (iii) apoio (ou falta dele) ã regiões favorecidas (ou desfavorecidas); (iv) divulgação textual sobre a distribuição de dividendos, (v) evidenciação de remuneração de diretores e (vi) divulgação textual sobre perdas na carteira, vinculados. Apresentamos a Tabela 2 que sumariza a categorização e direcionadores dos dados coletados:

Tabela 2 – Conceitos, direcionadores e categorias

Conceitos

Direcionadores

Categorias

Estrutura, Bloco Histórico e Hegemonia

Fazenda, grande propriedade, regime escravo, trabalho livre, Sudeste, Norte e Nordeste (Furtado, 2007, Neto, 2009).

Modelo monocultor cafeeiro Foco em regiões desenvolvidas em detrimento das demais

Superestrutura, Bloco Histórico, Hegemonia e Ideologia

Café, bem público (Netto, 2009)

Criar a realidade do café como fundamental para o país como um todo.

Sociedade política e Estado ampliado

Decretos, autorizações, autorização de emissão de notas (Pacheco, 1973)

Relações do poder público com o Banco (benesses)

Sociedade civil, Estado ampliado, intelectuais e instrumentos de difusão

Diretores, gerentes (intelectuais) inseridos na dinâmica do banco (Pacheco, 1973)

Influência na divulgação de informações bem como manipulação de conceitos contábeis

Através dessas categorias buscava-se verificar se no financial reporting a que tínhamos acesso existia: (i) interfaces entre poder político e sociedade civil, (ii) relações entre a estrutura e a superestrutura, fundamental para a manutenção do bloco histórico, garantindo a hegemonia, assim como apontado por Gramsci (1999) e (iii) qual e por que da ideologia do grupo dominante.

A seguir, elucidaremos os tratamentos contábeis feitos pelo Banco do Brasil sobre remuneração de diretores e perdas com créditos aos clientes e na sequência apresentamos a quarta fase da análise documental (síntese) na apresentação dos resultados.

3.3.2 Identificação e tratamento de dados contábeis (remuneração dos diretores e créditos duvidosos): impactos na rentabilidade e distribuição de dividendos

A análise das demonstrações contábeis e dos relatórios suscitou a utilização de duas transações contábeis: a remuneração dos diretores e os créditos de liquidação duvidosa.

Segundo os estatutos da instituição que tivemos acesso, a Diretoria tinha direito a 4% - 6% de direito de comissão no tocante ao lucro líquido. Conforme verificado nos relatórios, esse gasto é tratado como redução do patrimônio líquido, não como despesa. O efeito imediato é a não diminuição do lucro e o posterior aumento no dividendo como abordaremos mais à frente.

Como a função do banco é fornecer crédito, é sabido que muitos devedores não honrem seus compromissos, ainda mais em períodos de crise como os últimos cinquenta anos dos Oitocentos. Porém não é efetuada nenhuma divulgação acerca da contabilização como despesa (ou não) desses eventos. Há apenas descrições breves sobre poucos casos de falências (apenas um parágrafo, em muitos casos). O único lançamento contábil efetuado era a saída da carteira (normal) a crédito e debitando-se a rubrica chamada títulos em liquidação (também no ativo).

Quando efetuados todos os esforços para a cobrança dos títulos já vencidos era efetuada a transferência ou a absorção pela conta de patrimônio Fundo de Reserva. Vejamos então que uma perda na carteira, não transitava nunca pelo resultado, não afetando o lucro e, por conseguinte, a distribuição de dividendos aos acionistas, nem a comissão dos diretores.

A proxy que utilizamos para a despesa para devedores duvidosos foi a constituição do fundo de reserva no período, já que o caminho natural das perdas na carteira de crédito da instituição transitavam diretamente para a referida conta e nos exercícios imediatamente subsequentes eram consumidas e lançadas novas, que também no próximo exercício eram revertidas, isto é, utilizadas. A própria transferência para as contas tanto de “Títulos em Liquidação” como “Fundo de Reserva” não respeitava nenhuma “regra”, ficando à mercê da tempestividade desejada pela Administração do Banco.

Nesse sentido efetuamos nesse trabalho a contabilização tanto da remuneração dos diretores bem como a constituição das perdas nas operações de créditos com clientes como despesa, não como redução do patrimônio.

Apresentaremos com os números ajustados, os efeitos na rentabilidade e na distribuição de dividendos em bases decenais, bem como os efeitos acumulados durante o tempo (1853-1902) , inclusive recalculando as rubricas com os lucros dos períodos com efeitos das despesas supracitadas, a fim de elucidar a descapitalização do Banco, bem como a transferência do público (Banco) para o privado (acionistas). Ou seja, a materialização e explicação da ideologia.

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO (SÍNTESE)

A análise é feita em duas frentes: a textual e a quantitativa. Na primeira abordaremos a atuação dos atores identificados bem como as relações entre os mesmos.

4.1 Análise textual do financial reporting

Nessa seção iremos abordar algumas evidências do vínculo entre a sociedade política e a sociedade civil e a relevância do mesmo para a hegemonia ideológica do grupo dominante no Brasil durante o período estudado.

A leitura e análise inicial suscita o enquadramento conceitual gramsciano, sobretudo nos textos contidos nos Relatórios Anuais, identificando os atores e forma de atuação:

Tabela 3 – Esquema de identificação dos atores no esquema gramsciano

Conceito

Ator

Atuação

Sociedade politica

Império (imperador D. Pedro II) e Regime presidencialista (1889-1902)

Poder de repressão. Poder de polícia e burocracia.

Sociedade civil

Banco do Brasil (e seus acionistas)

Financiadores da realidade econômica brasileira (café, sobretudo) e beneficiários da atuação do banco (dividendos)

Estado ampliado

Banco do Brasil (+) estrutura política (sociedade política)

Cooperação mútua garantida pela coerção e da criação de realidade

Ideologia

O Brasil é o café e o café é o Brasil. Costumes conservadores.

Café é bem público e como tal deve ser incentivado.

Instrumentos de difusão ideológica

Financial reporting

Criar concepção de mundo. Fonte de informação.

O objetivo dessa seção, pois, é identificar os atores como o Banco do Brasil (representante da sociedade civil) que foi ferramenta de orientação ideológica, através do financial reporting (instrumento), levando em consideração o conceito de Estado Ampliado na interface com a sociedade política nos mais diversos momentos históricos. Apresentamos inicialmente a atuação do Banco do Brasil em prol dos detentores dos meios de produção, sobretudo os cafeicultores, eclodindo com a disseminação da ideia geral de que estes deveriam ser incentivados a qualquer custo em detrimento do restante da sociedade brasileira. Verificaremos a atuação dos intelectuais do grupo dominante. No início dos anos de 1870, começam a ser verificados as primeiras menções a importância do café para o Brasil e para a instituição financeira (BB, 1871):

Não escapa, por certo, á vossa illustração as vantagens que resultarião para o Banco do uma modificação neste sentido no regimen das hypothecas .

Mas para que tenha lugar semelhante modificação é necessário dilatar o prazo da duração do Banco, e minorar o onus do resgate das notas circulantes reduzindo-o a uma proporção mais equitativa, afim de que o Branco do Brazil fique habilitado para continuar a prestar novos auxílios á lavoura que os demandar.

Como vêdes a realização destes idéias depende de concessões de favores que só os Altos Poderes do Estado podem fazer.

Se depois de reflectido estudo julgardes que o Conselho deve impetrar aquellas alterações, é de esperar que os Poderes do Estado não recusarão os meios de que necessitamos para conseguir o fim de emprestar á lavoura capitaes a juro nunca maior de 6%, com amortização lenta e desassombrada (p 14).

Percebemos aqui a visão dominante de que a grandeza do país depende do sucesso da produção do café, responsável por alimentar os cofres do governo e dos acionistas. E que para atingir o objetivo, deveriam ser tomadas atitudes para com esse bem nacional.

A escassez na colheita do café o anno passado influio sobre a regularidade do serviço da divida hypothecaria.

Esta mora de caracter todo transitorio, nenhum receio inspira á Administração do Banco, que concedeu aos devedores prazo razoável para o pagamento de seus compromissos até á exportação da nova colheita. Minorados os encargos que pesão sobre os contratos hypothecarios, resultado que se há de conseguir com as providencias que solicitamos dos altos poderes do Estados, e alargada a zona das operações a outros municípios das províncias de S.Paulo e Minas, o futuro da Caixa Hypothecaria se apresenta debaixo de melhores auspícios.

(...) Os capitaes não podem encontrar emprego mais seguro não só quanto á solvabilidade do devedor, como quanto á pontualidade na prestação da renda: além da garantia do emissor, o Banco do Brazil (que só por si é plena) e aos quaes se prende inteiramente a futura grandeza do paiz (p. 21).

Porém, as medidas se tornam mais diretas e específicas nos anos de 1880 sendo efetuado, inclusive, um Acordo com o Governo Imperial em 1888, devido às “intempéries” causadas pela abolição da escravatura. Vejamos as condições desse Accordo (BB, 1888):

ACCORDO celebrado entre o Governo Imperial e o Banco do Brazil em 3 de agosto de 1888 para auxilios a lavoura (...)

5.a Nenhuma hypotheca se fará por somma menor de dous contos de réis nem maior de vinte contos de réis (...)

6.a O juro será para todas de seis por cento (...)

7.a A zona estabelecida para estas operações comprehenderá as provincias de S. Paulo, Rio de Janeiro, Minas Geraes e Espirito Santo, sendo destinados quatro mil contos de réis á primeira e oito mil contos de réis para ás tres ultimas. (...)

9.a O Banco facilitará estas operações, tanto quanto puder (grifo nosso), afim de ter sempre empregado o referido capital (...)

10.a O capital fornecido pelo Governo Imperial não vencerá juro a seu favor (grifo nosso), mas ser-lhe-á restituido integralmente no fim do prazo do contrato, correndo os lucros e prejuizos por conta do Banco (...)

11.a Por virtude deste accordo fica o Banco dispensado da multa de oito por cento a que está sujeito (...) para a execução da Lei 2.400 de 17 de Setembro de 1873 (...) (p. 41-42)

Esse acordo de agosto de 1888 do Banco do Brasil mostra muito bem as generosas relações com o poder dominante já que destina 12 mil contos para o Sudeste brasileiro, os cafeicultores. A taxa também é diferenciada, 6% contra 10% nos empréstimos “normais”. E lembrando que o “Banco facilitará estas operações, tanto quanto puder (...)” como apontado acima. Porém também se percebe a tentativa do Banco de incluir nessa realidade os pequenos produtores da região (contratando até “dous contos”), numa tentativa de aumentar a massa dos adeptos da ideologia cafeeira brasileira através das benesses material tanto do banco quanto do Estado na atuação direta na questão cafeeira. Uma tentativa de transformismo por parte dos intelectuais do grupo dirigente. Porém deixa de lado os produtores de menor escala, de cunho familiar que não consegue financiar os referidos “dous contos”. O Banco também sai ganhando, já que se trata de um dinheiro sem custo “já que não vencerá juro algum” para o Império: corre apenas o risco de crédito, altíssimo na época e não refletidos na contabilização desses títulos duvidosos como veremos a frente.

Com o advento da República (1889) as relações se tornam mais diretas, assim como referido por Netto (2009). Lembremos, pois, que tanto os militares quanto a própria república oligárquica eram balizadas pelos mesmos ideais materiais, já que seu poder político era financiado quase que de maneira exclusiva pelos rendimentos do café (BB, 1890):

Ainda uma vez a Administração do Banco consultou, menos sus interesses, do que os da lavoura, a quem tem auxiliado ha longos annos, sem outra preoccupação que não seja a de cumprir lealmente, os compromissas para tal fim contrahidos com o Governo.

O resultado, porém, deste succinto balanço de lucros e perdas, procedentes da liquidação verificada, demonstra que o Banco não tem auferido dos auxilios prestados á lavoura vantagens taes, que podessem induzil-o a aceitar novos sentimentos de patriotismo pelo mesmo Governo, que se manifestava então empenhado em debellar a crise do trabalho, com que luctava a lavoura. (p. 32)

Na república oligárquica o discurso era o mesmo (BB, 1894):

Elles revelam em alto gráo o tino, o acerto e a prudencia com que foi sempre gerida esta Carteira do Banco do Brazil. Ainda mais: baseados os emprestimos principalmente na lavoura do café, foram na sua maioria os compromissos saldados com pontualidade, mesmo no periodo difficil da transformação do regimen do trabalho escravo para o trabalho livre, pontualidade esta que por si só faz entrever corollarios do maior valor : a pubberdade do nosso solo e a probidade da classe agricola. (p. 7)

Assim, verificamos em primeiro lugar, que o Banco do Brasil foi utilizado como instrumento direto no fornecimento de crédito, em condições extremamente favoráveis para os cafeicultores, sobretudo os grandes, médios e pequenos. Um jogo bem arquitetado entre os detentores dos meios de produção (proprietários de terras, governo e Banco) que trazia vantagens diretas a esses envolvidos. Porém a agricultura familiar, de subsistência, fora abandonada com os limites operacionais relativos aos empréstimos.

Em segundo lugar, em termos da dialética, era necessário impregnar a concepção de mundo da classe dirigente nacional em todos: criar a ideia que a questão do café não era um problema apenas dos agricultores que se dedicavam ao gênero, mas da nação como um todo. O símbolo da riqueza pública deveria ser incentivado a qualquer custo. Mesmo com as mudanças do poder político, a tônica do discurso continua monocrômica. Essa transformação do café em bem público é uma tentativa clara do poder dirigente de fazer transparecer as ações do grupo dominante como não apenas com o objetivo de atingir seus interesses, mas sim da sociedade como um todo.

4.2 Impacto da contabilização da gratificação dos diretores

Abaixo, elucidamos os efeitos da não-consideração da referida comissão como um elemento de patrimônio e sim de resultado. Quais os impactos na rentabilidade e na constituição do fundo de reserva?

Tabela 4 – Efeitos da remuneração dos diretores na rentabilidade, constituição de fundo de reserva e distribuição de dividendos para os decênios bancais 1850-1893 (em réis-mil)

Anos 1850

Anos 1860

Anos 1870

Anos 1880

Anos 1890 (de 1891 a 1893)

Lucro líquido divulgado

15.781.698

42.670.650

47.384.551

43.445.991

39.736.181

(-) Comissão para diretores

645.671

2.169.169

777.901

756.126

383.460

(=) Lucro líquido ajustado

15.136.026

40.501.481

46.606.650

42.689.865

39.352.721

Efeitos em %

Relativos aos lucros e distribuição de dividendos

-4,09%

-5,08%

-1,64%

-1,74%

0,97%

Relativo à constituição do fundo de reserva (médio)

-3,84%

-17,81%

-30,92%

-73,32%

-61,67%

Relativo ao ROE (médio)

-0,28p.p.

-0,41p.p.

0,01p.p.

0,07p.p.

0,02p.p.

Efeitos absolutos

Fundo de reserva divulgado (6%)

944.444

10.419.969

18.556.651

12.084.034

9.748.624

Fundo de reserva ajustado (6%)

908.162

8.564.356

12.818.271

3.224.070

3.736.440

Dividendos divulgados

14.096.200

30.726.840

28.050.000

30.090.000

33.516.970

Dividendos ajustados

13.519.542

29.164.836

27.589.510

29.565.600

33.234.339

ROE divulgado (médio)

8,22%

11,69%

11,83%

10,19%

6,80%

ROE ajustado (médio)

7,59%

11,28%

11,84%

10,26%

6,81%

A análise dos anos de 1850, iniciada com o ano bancal de 1854 evidencia além do pagamento dos ordenados mensais aos diretores da instituição, havia essa gratificação que diferentemente daquela era debitada ao patrimônio e não ao resultado na ordem de 4% a.a. Retirando os efeitos de tal remuneração do lucro líquido, mantendo, assim, uniformidade conceitual e, por conseguinte de tratamento contábil, verificamos que mesmo de valores relativamente pequenos em relação ao lucro gerado pela instituição, a distribuição de dividendos aos acionistas seria menor na ordem entre 3,72% e 4,45% daquele que fora de fato pago à época. Na mesma direção a constituição do fundo de reserva também seria afetado, já que o lucro base para o seu cálculo seria também reduzido. Assim, nos anos de 1850, verificamos que caso fosse considerada despesa a gratificação à administração, o fundo de reserva contabilizado seria menor entre 2,76% e 4,45% do real. A rentabilidade vista sob a ótica do patrimônio líquido contábil (ROE) também é afetada pela tratativa dispensada à remuneração supracitada. Nos anos componentes de 1850, diminuiria na faixa de .10 p.p. e .40 p.p.

Com os anos bancais da década de 60, verificamos que os lucros e dividendos seriam menores na razão de 2,22% e 13,58%, caso a remuneração da direção fosse tratada como despesa do exercício bancal. Esse último decréscimo de 13,58% é ocorrido devido ao pagamento na ordem de 653.800$000 em 1869 aos administradores. Mas desconsiderando esse exercício atípico, os lucros e dividendos seriam menores entre 2,22% e 5,11% nesse período. Já as constituições dos fundos de reserva sofrem uma alteração importante já que após 1865 são contabilizados valores adicionais nessa rubrica para fazer face à eventuais prejuízos, como já verificamos mais acima. Nos números ajustados de fundos de reserva apresentados, consideramos as adicionais divulgadas separadamente nas demonstrações da conta ganhos e perdas da instituição e o valor estipulado pelos estatutos dos respectivos anos de 6%. Logo, a variação a menor se situa entre 0,76% e 36,15% nos anos de 1860. Na mesma direção se comportou o ROE que variou entre nulo (0p.p) e -1,2p.p nos anos de 1860.

Nos anos de 1870, também a se destacar a variação alta no fundo de reserva constituído, quando comparados os reais e os ajustados, devido a contabilização de valores adicionais para absorção de perdas na carteira em todos os anos de 1870. Consequentemente, verificamos que os lucros e dividendos (reais e ajustados) se manteriam em uma mesma faixa com variação situando-se entre -1,40% e -2,23%, fato esse que implica em ROEs praticamente similares. Mas percebamos que o efeito da crise dos anos 60 já se faz sentida na rentabilidade da instituição que supera a marca dos 10% em todos os anos bancais. Mas gerou insatisfação em seus acionistas já que seu retorno foi inclusive menor que na década de 60, no auge da crise.

Na década da abolição da escravatura, verificamos que a instituição passa a contabilizar fundos de reserva de maneira não segregada, isto é, classificando separadamente aquela estipulada em seus estatutos daquelas adicionais. Assim sendo, a constituição do fundo de reserva em nossos ajustes contém apenas aquele evidenciado (6%). Esse fato implica na constituição desse fundo que tem variância importante, com um mínimo de -38,53% em 1880, ano último em que havia a classificação separada e, -80,09% em 1888, ano da abolição. Os lucros e dividendos distribuídos novamente seriam diminuídos numa faixa de -1,44% e -1,82% caso a remuneração dos diretores tivesse sido tratada como despesas do ano bancal. Nessa direção aquela reclamação dos acionistas nos anos de 1870 agora fora atendida já que seus dividendos voltaram aos níveis da década anterior, mesmo com todas as dificuldades causadas pelo ato de abolição e a queda da rentabilidade da instituição, que nos anos próximos à assinatura da lei Áurea voltam aos níveis do período da crise bancária dos anos 60.

Nos anos primeiros da República, a entidade continua a utilizar a mesma prática de contabilizar fundos de reserva sem distinção de sua categoria, o que implica na distribuição dos números ajustados apenas daqueles permitidos em seus estatutos. Com a reorganização societária promovida nos anos 90 e consequente aumento de capital adicionado às crises sociais e econômicas, a rentabilidade da instituição sofre no primeiro ano, mas retoma no segundo, com distribuição novamente avultada de dividendos. Assim, o ROE que parte de 5,10% em 1890 vai a 10,94% em 1892, indo a mínima de 2,03% em 1893 devido ao aumento de capital ocorrida neste ano e o fraco desempenho operacional do banco. Comparando-se com os ajustados, o ROE, lucros e dividendos permaneceriam numa faixa similar, com pequena redução situada entre -.08p.p. e .14 p.p. para o ROE e -1,21% e zero para lucro e dividendos.

4.3 Impacto da contabilização dos créditos de liquidação duvidosa e baixados para prejuízo

Agora apresentaremos o efeito da não contabilização como despesa das perdas estimadas com a carteira de crédito para o Banco do Brasil no tocante à lucratividade e distribuição de dividendos no período de 1853 a 1900, separando pelo período de 10 anos compreendidos.

Tabela 5 – Efeitos da contabilização do fundo de reserva no patrimônio na rentabilidade e distribuição de dividendos para os decênios bancais de 1850 - 1900 (em réis-mil)

Anos 1850

Anos 1860

Anos 1870

Anos 1880

De 1890 a 1900

Lucro líquido divulgado

15.781.698

42.670.650

47.384.551

43.445.991

114.530.950

(-) Constituição de fundo de reserva

944.444

10.419.969

18.556.651

12.084.034

20.972.839

(=) Lucro líquido ajustado

14.837.254

32.250.681

28.827.900

31.361.957

93.558.111

Efeitos em %

Relativos aos lucros e distribuição de dividendos

-5,98%

-24,42%

-39,16%

-27,81%

-18,31%

Relativo ao ROE (médio)

-0,36p.p.

-2,29p.p.

-4,06p.p.

-2,45p.p.

-1,18p.p.

Efeitos absolutos

Dividendos divulgados

14.096.200

30.726.840

28.050.000

30.090.000

83.750.314

Dividendos ajustados

13.252.636

23.223.492

17.065.110

21.752.192

68.414.006

ROE divulgado (médio)

8,22%

11,69%

11,83%

10,19%

6,54%

ROE ajustado (médio)

7,85%

9,40%

7,77%

7,74%

5,46%

No item anterior, quando examinados os efeitos da remuneração dos diretores no patrimônio da instituição, percebemos a dimensão diminuta nos períodos estudados. Porém o assunto se torna mais delicado quando falamos da principal despesa de uma instituição financeira, a questão com as perdas estimadas da carteira.

Nos anos de 1850, percebemos que o lucro e por conseguinte a distribuição de dividendos seriam razoavelmente menores caso fosse adotada a prática da contabilização como despesa. Em média foram pagos dividendos 6% maiores durante esses primeiros anos. Verificamos, pois, que o banco praticamente foi comprometido em 50% do seu capital social (14.096.200$000 de 33.000.000$000) e praticamente a totalidade do lucro majorado com a não contabilização dos títulos duvidosos (14.096.200$000 de 15.781.697$518) já nesses primeiros seis anos de existência, com a transferência de recursos a título de dividendos. O ROE acompanha esse raciocínio, variando na ordem de negativos .23 p.p. a .50 p.p. no período. Nos relatórios do banco da época há uma série de menções aos problemas com as contrapartes, sobretudo nos casos de falências dos devedores.

Verificamos que com a entrada dos anos de 1860 e por consequência de sua crise econômica, que a entidade faz um reforço importante no fundo de reserva sobretudo após 1866, que faz com que os efeitos sobre os lucros e dividendos sejam de ordem importante, diminuindo entre 35,52% a 42,22% menores com a contabilização como despesa. A rentabilidade do patrimônio também é afetada de maneira extensa com valores menores nos primeiros anos de 1860 passando a valores altos após a segunda década, superando a faixa dos 4 p.p. em boa parte dos anos bancais. As menções nos relatórios desses anos às perdas são diversas, bem como as esperanças da instituição. Lembremos nos últimos relatórios dos anos 50 que o banco apelava à divina providência. E já em 1860, a Divina Providência agiu, mesmo em período de redução das operações do Banco e em crise, o que seria de se supor seria um incremento em “Títulos em Liquidação”, mas a Divina Providência não falhou (BB, 1860):

De 1 de Julho de 1859 a 30 de Junho do corrente anno, tem o Banco recebido em pagamentos por conta de titulos em liquidação, Rs. 252:707$480.

(...)

Cumpre acrescentar, que da importancia lançada á conta titulos em liquidação ainda tem o Banco uma grande parte a receber, vindo portanto a ser verdadeiramente insignificante o prejuiso real, mórmente attendendo-se á massa das transacções e á reducção que soffrera a carteira do Banco. (p. 14).

E por esse último parágrafo dá a entender que a rubrica Títulos em Liquidação tem mais saldos a receber do que a vencer, o que o futuro mostrou ser um engano.

Nos anos de 1870 os efeitos da crise da década passada são minorados aos poucos, porém a contabilização dos fundos de reserva ainda se mantém em níveis razoáveis, contudo não como outrora. Mesmo assim, os lucros e dividendos distribuídos seriam menores na faixa de 29,72% a 42,40% se os fundos de reserva contabilizados como despesa fossem na época. A rentabilidade sobre o patrimônio também varia em ordens altas superior a 4p.p. nos anos de 1870. Interessante notar que os dividendos totais distribuídos correspondem a praticamente à totalidade do lucro líquido ajustado no período. E nesse período de florescimento da produção cafeeira, em 10 anos quase o patrimônio inteiro fora devolvido aos sócios.

Nos anos de 1880, nos meandros do ato da abolição, os resultados verificados permanecem similares àqueles dos decênios anteriores. Os lucros e dividendos da década seriam 27,81% menores, alcançando a máxima de 33,93% negativos em 1884. A rentabilidade do patrimônio também seria decrescida em faixas negativas altas, superiores a 2 p.p. na maior parte dos anos bancais, com mínima de -1.80 p.p e e máxima de -3,42 p.p. A administração elucida novamente de maneira otimista o cenário e o direcionamento dos títulos em liquidação (BB, 1881):

Convem observar que a maior parte das sommas levadas a credito da conta dos titulos em liquidação representa dividas de antigas massas fallidas, que vão desapparecendo do activo quando a administração do Banco entende que nada mais ha a receber dos respectivos devedores. (p. 6).

Já no exercício de 1885, a expectativa já não era tão alta (BB, 1885):

Não correrão bem os negocios durante este periodo: a estagnação de avultado capital da carteira commercial, que se acha sob protestos, fallencias e moratorias, e a liquidação de prejuizos realisados, agorentando os lucros e absorvendo uma boa parte dos fundos de reserva (como adiante vereis) determinarão a deliberação que o conselho director tomou de diminuir os dividendos afim de ir fortalecendo as reservas destinadas a compensar as perdas, que por ventura se tenhão ainda de verificar nas contas do activo. E podeis acreditar, Srs. accionistas, que a administração guiando-se pelo que o interesse do Banco a aconselha, envida todos os esforços para conseguir minorar aquellas perdas, já que não é possível evital-as de todo.

Façamos votos por melhores tempos. (p. 6).

A menção aqui se torna interessante, já que o lucro não fora afetado pelas perdas na carteira, devido a tratativa adotada quanto à contabilização das mesmas. Porém, o incremento lançado ao fundo de reserva, fez com que a entidade propusesse a diminuição do dividendo, novamente, não apurado conforme o lucro, mas como uma remuneração quase fixa ao capital empregado.

Nos anos compreendidos entre 1890 e 1900 e primeiros da República há uma diminuição dos efeitos da contabilização dos devedores duvidosos no resultado ajustado, porém ainda situados em faixas altas superiores a 15% negativos, mas com um máximo de 39,91% em 1893. Aparentemente uma política do banco de contabilizar 15% do lucro com fundo de reserva, porém não explícita nos documentos a que tivemos acesso. Nessa mesma direção o ROE passa a também oscilar em extremos menores, inferiores a 1 p.p. negativos em boa parte dos exercícios bancais. O discurso nos anos 90 já volta àquele tom menos analítico como verificado nos relatórios dos anos de 1850 e primeiros meados dos anos 60. Vejamos um extrato (BB, 1896):

(...) cumpre reconhecer que os atrazos nos pagamentos das prestações de juros e amortisações vencidas são menores do que seria para receiar. (p. 15).

4.4 Dividendos: a distribuição do público para o privado

Mas, talvez, o produto mais nefasto e principal justificativa da dinâmica exploratória burguesa (o lucro, o dinheiro) está na distribuição de dividendos para a classe dominante e para o Estado, já que como sabemos lucro não significa entrada de caixa e como verificamos quase por completude o lucro é distribuído aos capitalistas. Agora verificaremos os efeitos das duas práticas acima e sua consequência no tocante à distribuição dos dividendos aos capitalistas brasileiros da época. Elucidaremos o caráter exploratório que o Banco empregou durante todo o período, desfalcando a instituição e o país como um todo, contribuindo, inclusive para o problema de liquidez da mesma, que recorria, como vimos, frequentemente a favores do poder público para a emissão de notas. A análise se dará novamente por decênios. A tabela abaixo mostra os anos de 1850 a 1900:

Tabela 6 – A distribuição de dividendos comparando os números reais e ajustados nos decênios de 1850-1900 (em réis-mil)

Anos 1850

Anos 1860

Anos 1870

Anos 1880

De 1890 a 1900

Lucro líquido divulgado

15.781.698

42.670.650

47.384.551

43.445.991

114.530.950

(-) Constituição de fundo de reserva

944.444

10.419.969

18.556.651

12.084.034

20.972.839

(-) Remuneração dos diretores

645.671

2.169.169

777.901

756.126

383.460

(=) Lucro líquido ajustado

14.191.583

30.081.512

28.049.999

30.605.831

93.174.650

Efeitos em %

Relativos aos lucros e distribuição de dividendos (médio)

-10,08%

-29,50%

-40,80%

-27,81%

-18,31%

Relativo ao ROE (médio)

-0,70p.p

-2,82p.p.

-4,24p.p..

-2,62p.p.

-1,31p.p.

Efeitos absolutos

Dividendos divulgados

14.096.200

30.726.840

28.050.000

30.090.000

83.750.314

Dividendos ajustados

12.675.978

21.661.488

16.604.620

21.227.792

68.414.006

Descapitalização do banco em réis

-1.420.222

-9.065.352

-11.445.380

-8.862.208

-15.336.307

Dividendo/lucro divulgado

89,32%

72,01%

59,20%

69,26%

73,12%

Dividendo ajustado/lucro divulgado

80,32%

50,76%

35,04%

48,86%

59,73%

Dividendo real/lucro ajustado

99,33%

102,15%

100,00%

98,31%

89,89%

Notemos que já nos seus primeiros relatórios dos anos 50, o banco já era acusado de ser instrumento exclusivo de remuneração de seus acionistas. Nesses primeiros seis anos de existência, o banco já se vira desfalcado de praticamente 50% de seu capital realizado (14.096.200$000 de 33.000.000$000), além de ter distribuído praticamente todo o seu lucro aos acionistas a cada exercício social, fazendo com que o banco sofresse com liquidez, já que como sabemos lucro não significa necessariamente caixa, recorrendo comumente aos poderes de estado para regularizar tal problema de encaixe. Notamos que a instituição distribuiu 89,32% (!!!) do lucro gerado aos capitalistas, promovendo uma descapitalização total superior a 14 mil contos. Agora vejamos como eles declaram os pagamentos aos acionistas. A maneira curiosa com que esses dividendos são descritos, já que a conta não é feita sobre o lucro, mas sim sobre o capital realizado. Vejamos o exemplo do ano bancal de 1857 (BB, 1857):

O dividendo do 1.o semestre está na razão de 3,85 por cento do capital realisado e o do 2.o de 6,82 por cento, ou termo medio do anno 10,67 por cento. (p. 10)

Dá a impressão de que a taxa de distribuição é de apenas 10%. Caso utilizemos os números ajustados, aplicando-se a mesma taxa absurda de distribuição sobre o lucro, o desfalque na instituição seria 1.420.222$101 menor que o real. A rentabilidade e a distribuição de dividendos com os números ajustados seriam diminuídos em média 10% nesse período e a rentabilidade do patrimônio decrescente entre -.4 p.p. e -1,03 p.p.

Na década de 1860, como vimos mais acima houve o incremento do fundo de reserva para compensar os prejuízos da carteira decorrente da crise de meados dos anos 60. Assim sendo, verificamos que mesmo nesse cenário, a distribuição de recursos para os acionistas continua em alta. Considerando os números reais, talvez possamos pensar que há uma diminuição no pagamento aos sócios, oscilando em faixas menores que 60% sobretudo após a primeira metade da década; porém o que ocorre é justamente o contrário, já que após as destinações para o fundo de reserva e a parcela dos diretores, verificamos que ou todo o lucro fora pago aos acionistas, inclusive com alguns anos bancais, como 1864 e 1869, valores superiores ao lucro ajustado. A descapitalização total atinge nesse decênio a marca de quase 100% do capital realizado, sendo distribuído mais que a totalidade do lucro líquido ajustado no período para os acionistas. Se os dividendos distribuídos fossem calculados com base no lucro ajustado, o desfalque nos cofres do banco e a remuneração aos sócios seria de quase 9 mil contos a menor para os dois envolvidos. Além disso, a rentabilidade e distribuição de dividendos seriam bem menores, em especial após a segunda metade, atingindo máxima de 49,42% a menor em 1869 com os números ajustados. Nesse cenário, o banco sofreu desencaixe de maneira relevante no período, novamente recorrendo aos poderes políticos para honrar seus problemas de liquidez. Assim, além do ônus de financiamento da guerra do Paraguai, o banco também foi instrumento de remuneração aos acionistas. Mas os acionistas não estavam satisfeitos (BB, 1864):

O facto de haver o Banco do Brasil distribuido aos seus accionistas, nos ultimos dous semestres, dividendos comparativamente diminutos, em relação aos de annos anteriores, ao passo que fôra o seu capital social completado com o producto das duas ultimas chamadas na subida importancia de 6,600 contos, parece ter impressionado desfavoravelmente alguns espiritos menos reflectidos, os quaes, comparando instictivamente os referidos dividendos com os que repartira outro Banco de simples desconto, que funcciona nesta praça com um capital inferior á quarta parte do que actualmente dispõe o Banco do Brasil, não hesitão em tirar d’ahi argumento, no seu entender concludentes, contra as vantagens reaes que possam auferir aquelles que tem ligado os seus interesses á existencia e futuro dessa primeira instituição de credito do nosso paiz. (p. 11)

Como verificamos não houve redução nos dividendos, muito pelo contrário, os mesmos permaneceram em níveis extremamente altos quando colocados em perspectiva comparativa com os lucros gerados.

Os anos de 1870 assistem a completa distribuição dos lucros do banco aos acionistas, como demostra o dividendo real em relação ao lucro ajustado (100% em todos os períodos). Caso o lucro considerado fosse o ajustado, o banco pagaria dividendos de aproximadamente 40% menores no decênio aos capitalistas, devido à diminuição da sua base de cálculo, o lucro, fato este que diminuiria seus rendimentos numa faixa anual de mil contos de réis, totalizando mais de 11 mil contos nos anos de 1870. Com os mesmos ajustes, a rentabilidade sobre o patrimônio seria reduzida na faixa de -2,79 p.p e 5,31 p.p.

No decênio dos anos de 1880, o efeito dos dividendos sobre a instituição continua o mesmo dos anos bancais anteriores. Verificamos que praticamente 100% do lucro líquido ajustado fora distribuído aos acionistas, fato esse que pode contrastar quando notamos a taxa de 69,29% utilizando os números reais do efeito acumulado no período analisado. Na mesma direção, o banco praticamente fora descapitalizado em 100% do capital realizado, em época que as instituições financeiras, empresas e agricultores sofriam com a questão do fim do trabalho servil. Se o conceito de lucro fosse aquele o mais adequado, os dividendos e lucratividade da empresa diminuiriam numa faixa de 27% no período, o que implicaria numa remuneração menor aos seus acionistas de 8,8 mil contos de réis no decênio e a rentabilidade sobre o patrimônio oscilaria em quedas importantes de 1.96 p.p. até 3.59 p.p.

As divulgações dos anos 80 continuam as mesmas e chama a atenção o trecho em que o banco fala da segurança quanto aos níveis de remuneração dos acionistas (BB, 1887):

Pelo que respeita á situação geral do Banco, considerada a intensidade de suas operações, os lucros que ellas produzem e as sobras de dividendos remunerados, podemos consideral-a isempta de perigos, não obstante a prolongada crise que atravessamos e cujas consequencias tendem a estender-se no tempo e na acção deprimente dos valores que constituem boa parte, a melhor talvez, da riqueza do paiz. (p. 14).

Com a reorganização do banco em 1902, em que inclusive, como verificamos era acusado e fazia mea culpa acerca de ser um grande distribuidor de capital aos detentores de ações da entidade, a distribuição de dividendos assiste a uma diminuição pequena quando comparada ao lucro daquele observado durante a Monarquia e os primeiros anos, antes da reorganização. Todavia, a taxa acumulada nesse período continua próxima de 90% em relação ao lucro líquido ajustado, promovendo um desfalque de recursos no montante de 83 mil contos no período e que se comparando com o dividendo que seria pago utilizando a base de cálculo mais apropriada, os acionistas veriam seus recursos diminuírem na ordem de 15 mil contos de réis.

Agora considerando desde sua fundação de 1853 até 1900, evidenciamos o quadro abaixo, que nos permite tirar conclusões acerca da dimensão temporal como um todo:

Tabela 7 – Os efeitos da distribuição de dividendos no Banco do Brasil (1853 – 1900)

Anos 1850

Anos 1860

Anos 1870

Anos 1880

Anos 1890-1900

De 1853 a 1900 - soma

De 1853 a 1900 -média

Lucro líquido divulgado

15.781.698

42.670.650

47.384.551

43.445.991

114.530.950

263.813.840

52.762.768

Lucro líquido ajustado

14.191.583

30.081.512

28.049.999

30.605.831

93.174.650

196.103.575

39.220.715

Variação (ajustado/divulgado)

-10,08%

-29,50%

-40,80%

-29,55%

-18,65%

-25,67%

-25,67%

Dividendos divulgados

14.096.200

30.726.840

28.050.000

30.090.000

83.750.314

186.713.354

37.342.671

Dividendos ajustados

12.675.978

21.661.488

16.604.620

21.227.792

68.414.006

140.583.885

28.116.777

Variação (ajustado/divulgado)

-10,08%

-29,50%

-40,80%

-29,45%

-18,31%

-24,71%

-24,71%

Dividendo/lucro divulgado

89,32%

72,01%

59,20%

69,26%

73,12%

70,77%

70,77%

Dividendo real/lucro ajustado

99,33%

102,15%

100,00%

98,31%

89,89%

95,21%

95,21%

Descapitalização do banco em réis

-1.420.222

-9.065.352

-11.445.380

-8.862.208

-15.336.307

-46.129.469

-9.225.894

O Assim sendo verificamos que com a apropriação da contabilidade e do financial reporting, os acionistas do Banco do Brasil puderam receber um total de mais de 186 mil contos de réis, quase 5 vezes o patrimônio médio no período e aproximadamente 95,21%, quase a totalidade do lucro gerado pela instituição em quase 50 anos. Se o conceito de lucro fosse mais robusto que aquele adotado pela instituição, os acionistas receberiam menos 46 mil contos, superior a uma vez o patrimônio médio do período, um quarto maior que aquele de fato faturado.

A consequência em todos os períodos é uma fatal descapitalização da instituição, com conseguinte menor capacidade de efetuar empréstimos, ainda mais para as classes menos favorecidas, além de agravar os problemas de liquidez persistentes da instituição. Outrossim, verificamos nesse capítulo como a contabilidade foi utilizada pelo poder dominante em seus conceitos e técnicas para fins materiais, de dominação e de controle social.

5. Conclusões e considerações finais

O objetivo central do nosso trabalho foi entender através de uma abordagem gramsciana como o Banco do Brasil, entidade palco da união entre sociedade civil e sociedade política brasileira, se utilizou do financial reporting como instrumento de disseminação ideológico do grupo dirigente no período compreendido entre 1853 e 1902. A análise dos dados permitiu-nos verificar a existência de uma interface entre sociedade civil e sociedade política ao seio do Estado Brasileiro com benefícios materiais diretos para as partes.

Para a obtenção das conclusões acima, nos permitem inferir que o financial reporting e a contabilidade per si foram apropriados pelo grupo dominante para fins de dominação, através da disseminação ideológica. Tanto através do discurso empregado quanto da manipulação de conceitos contábeis: a contabilidade não deve ser encarada como neutra. Tanto a causa como a consequência tem origem na transferência de recursos públicos para o grupo dominante brasileiro, como vimos no A ideologia a ser impregnada não era voltada, como acabamos de ver para o bem público, mas sim para fins de lucro das classes dominantes brasileiras com intuitos claramente hegemônicos e de apropriação do Estado pela sociedade política e civil do século XIX e início do XX.

A própria instituição ou era acusada ou se auto intitulou culpada. Concluindo com último relatório do período de nossa pesquisa (BB, 1902):

D'esses lucros, repartiram-se 32.194:017$600 em dividendos, isto é, não permaneceram no Banco para revigorar o encaixe; e, sendo a cifra correspondente a taes lucros formada em grande parte por lançamentos de juros em debito de contas mal garantidas, de impraticavel liquidação muitas dellas e que nenhum movimento tiveram em largo periodo de tempo; não significando, portanto, essas utilidades, beneficios realizados em numerario, mas alinhamento de algarismo, - conjectura-se a que poderia chegar esse systema de trocar moeda corrente por cifras illusorias em fundos de reservas, titulos em liquidação que exprimiam perdas quasi totaes, contas correntes com garantia de acções e debentures desmarcadamente desvalorisados; em vez de reter esses lucros, mesmo ficticios, para afiançar não só o proprio capital que se ia assim desfalcando, como os depositos consideraveis confiados á sua guarda.

Distribuir dividendos n'estas condições equivale a restituição ou rateios de capital, processo censuravel em um estabelecimento de credito collocado nas apertadas conjecturas de não poder repôr, de um momento para outro, os consideraveis depositos em dinheiro de sua extensa clientela.

(...)

concorriam para os beneficios do Banco, eram de resultados negativos e, sobretudo, prejudiciaes, porque sobre elles se faziam calculos para dividendos, operando-se, assim, o escoamento de dinheiro e consequente aggravação de todas as dificuldades. (p. 23)

Como consideração final e não menos importante, gostaria de destacar que em minha visão o objetivo de qualquer pesquisa que adote a perspectiva gramsciana numa abordagem mais ampla deve ter sempre a práxis como seu objetivo final, evidenciando as condições repressivas a que somos submetidos, fornecendo elementos para a elucidação das contradições, incitando, por fim, a ação (política). E nesse certame essa pesquisa tem a ambição de se encaixar, já que como bem ilustrado por Viotti da Costa (2010):

(...) a despeito das transformações ocorridas entre 1822 e 1889, as estruturas socioeconômicas da sociedade brasileira não se alteraram profundamente, nesse período, de modo a provocar conflitos sociais mais amplos. O sistema de clientela e patronagem que permeava toda a sociedade minimizou as tensões de raça e classe. O resultado desse processo de desenvolvimento foi a perpetuação de valores tradicionais elitistas, antidemocráticos e autoritários, bem como a sobrevivência de estruturas de mando que implicam a marginalização de amplos setores da população. (p. 18).

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1 samir.sayed@unifesp.br. Universidade Federal de São Paulo, São Paulo-SP. Brasil. https://orcid.org/0000-0003-0970-076X

DOI: http://dx.doi.org/10.14392/asaa.2020130208

Artigo submetido em: 24/05/2018. Aceito em: 13/05/2020.